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  • Lon L. Fuller

    O CASO DOSEXPLORADORES DE CAVERNAS

    Traduo e notasRicardo Rodrigues Gama

    1 edioeBook

    2013Campinas/SP

  • NDICE

    Sobre o AutorApresentaoSuperior Tribunal de Newgarth Ano de 4300

    1. Introduo2. Voto do Juiz Truepenny3. Voto do Juiz Foster4. Voto do Juiz Tatting5. Voto do Juiz Keen6. Voto do Juiz Handy7. Manifestao do Juiz Tatting8. Concluso9. Post Scriptum

  • SOBRE O AUTOR

    Nasceu Lon Luvois Fuller em 1902 e faleceu em 1978. Guarda lugar de destaqueentre os filsofos ocidentais, alm de ser considerado um dos grandes juristas daAmrica.

    Lon. L. Fuller, como mais conhecido, estudou Economia e Direito em Stanford,foi professor de Teoria do Direito nas Faculdades de Direito do Oregon, Illinois e Duke. Apartir de 1940 lecionou na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, onde semanteve at 1972. Autor profcuo, criou e publicou inmeros estudos em direito civil,filosofia e teoria do direito.

    Obteve grande reconhecimento como filsofo do direito e sua notoriedade tornou-se ainda maior devido ao ensaio, O Caso dos Exploradores de Cavernas (The Case of theSpeluncean Explorers), obra notvel, publicada originalmente em 1949, que setransformou em matria de leitura e debate obrigatrios, entre estudantes e professoresde direito de todo mundo. Esse ensaio foi traduzido para vrios idiomas.

    Entre os profissionais do direito da Amrica inegvel o reconhecimento de quegoza, por suas contribuies legislao sobre contratos e ao debate para moldar oconflito moderno, entre o positivismo e a jusnaturalismo.

    Sua outra obra mais conhecida The Morality of Law, de 1964, de carterjusfilosfica, na qual o autor, alm de propor a discusso da conexo entre a legislao ea moral, expe sua viso moderada do jusnaturalismo procedimental, comrecomendaes especficas acerca das condies fundamentais para garantir que odireito seja correto e esteja em conformidade com os preceitos da lgica formal.

    de sua autoria os Oito Aspectos que Conduzem Invalidao de QualquerSistema Jurdico:

    1. A ausncia de regras e normas legislativas conduz o julgador decisesinfundadas.

    2. Falha na publicizao e na forma de tornar conhecidos os dispositivos legais.3. Legislao imprecisa ou obscura que impossibilita a devida compreenso.4. Legislao retrgrada.5. Legislao contraditria.6. Conflitos que esto alm dos interesses pessoais e da regras jurdicas.7. Legislao instvel (com frequentes alteraes).8. Divergncias entre a jurisdio/administrao e a legislao.

    Obras de Lon L. FullerThe Case of the Speluncean ExplorersThe Morality of Law.Basic Contract Law. (coautoria).Anatomy of the Law.

  • Problems of Jurisprudence.The Law in Quest of Itself.Legal Fictions.The Principles of Social Order.

  • APRESENTAO

    A envolvente narrativa do Caso dos Exploradores de Cavernas, em sua lnguamatriz The Case of the Speluncean Explorers[1], gera diversas inquietaes naqueles quebuscam o exerccio da razo do justo.

    Nas articulaes com os fatos, o autor vai desenhando caminhos servis lgicajurdica e iniciao na teoria do direito, isso com a invocao do caso real sob a ticado direito como cincia tendente a pr fim aos conflitos gerados em momentos em que anecessidade tenta contrariar o ato ilcito. Em anlise sociolgica, o direito no passa deregras exigidoras de condutas retas ou que se amoldem noo mais polida de justia.Na resoluo das pendncias, a aceitao dos padres de conduta estabelecidos pelasregras jurdicas contribui para com a estabilizao dos indivduos nos seusrelacionamentos em sociedade.

    A ambientao prtica do presente escrito, por vezes, indica a realidade dassesses dos tribunais, bem como suas funes, pretenses e at as preocupaes. Porconta do rigor de todo raciocnio jurdico impresso no julgador, as decises tendem a servistas como frias e no revelar os anseios dos jurisdicionados, da a preocupao comfatores ou pessoas que nem fazem parte do histrico, mas foram envolvidos no caso sobjulgamento, para esgotar todas as possibilidades em torno das falhas que cercam todas asdecises geradas por seres humanos falhos. Ademais, h preocupao expressa com aopinio pblica por alguns juzes, como se necessitassem da aprovao popular.Infelizmente, ampliam-se as possibilidades de equvocos aqui, no por desrespeitarsempre a opinio pblica ou ser exigida a aprovao incondicional dela, seno por exigirinterpretao da opinio pblica e do caso a ser decidido, isso sem computar as ilaesfeitas entre tal opinio e o desdobramento dos fatos e fundamentos do caso.

    Em contenes estritamente jurdicas, a aplicao da norma no ambiente dateoria positivista parece resolver o problema para muitos estudiosos que no conseguemexpandir a sua viso para outras searas do conhecimento humano. Alis, a prpriacondio humana exige que se reflita mais sobre a aplicao das regras geradas peloparlamento. Na adequao da regra legal ao caso concreto, a deciso do julgador devepassar sempre pelo direito, mas no somente pelo direito. Alm da passagem pelasociologia e pela filosofia, h incurses evidenciadas pela histria, pela teoria do estado epela cincia poltica, da a deciso encontrar respaldo na noo de justia cultuada pelopovo do perodo em que se vive. Enfim, todo o embasamento intelectual da deciso deverefletir as especulaes dos indivduos que vivem vinculados por diversos elementos nomesmo territrio.

    Em vias filosficas, as especulaes baseadas em duas noes podem encontraruma terceira a ser seguida ou serem servidas de argumentaes para a defesa de um doscaminhos com maior maturidade. Por vezes, as manifestaes do radicalismo dasinterpretaes acadmicas tm por fundamento uma corrente filosfica j conhecidaem nosso meio, com a defesa de pensamento com fulcro na teoria sociolgica ou nateoria historicista. evidente que a tendncia em resolver o caso no plano sociolgicoindica a adoo da teoria sociolgica, enquanto a fundamentao histrica para o casoexpressa a aproximao da teoria historicista.

  • Nos debates travados entre os acadmicos de direito, emergem at noes decincia poltica com a constatao da impossibilidade de um sistema jurdico de exceoser criado no mago de outro sistema maior de dominante. Ao eliminar um dosmembros da sociedade, sugerida pelos indivduos criadores do regime de exceo, aanlise do caso num contexto diferente perverte a ordem lgica imposta pelo pacto

    No plano pedaggico, o conhecimento crtico criado com a extenso intelectualproposto pelo prprio caso, indubitavelmente, pode ser creditado como conhecimento dealta qualidade. Da estarmos convencidos de que os questionamentos ingnuos de leigoscontribuem para reflexes bem mais profundas e precisas. Por outro lado, em reflexesbem mais avanadas, as dificuldades que cercam a arte de julgar transparecem j nosprimeiros comentrios dos juzes que apreciam o caso to trgico dos exploradores decaverna. Ao estabelecer a relao entre a percepo do julgador, a norma jurdica a seraplicada e a noo de justia, as dificuldades so ampliadas por demais; alis, cumpreressaltar que a maturidade no demora a chegar com to pouca insistncia.

    Qui a presente apresentao deva ser lida depois do entendimento do casocriado com requintes de realismo no texto do livro e isso se deve ao fato de no partir desugestes sobre um caso desconhecido. Alis, a opinio sobre o nada no permite odesenvolvimento de qualquer raciocnio lgico. Parte-se aqui para o campo filosfico,uma vez que as teorias arquitetadas pelos juristas iniciam sua escalada no campo tericoe, depois de bem estruturadas, visam resolver diversos casos ocorrentes no meio social.

    Por derradeiro, a nossa proposta de traduo sempre foi a de trazer os textostraduzidos para uma verso jurdica, bem distante das propostas de tradutores que notem formao jurdica e trazem noes bem diferentes daquelas que interessam aosiniciantes e at doutores do direito. Ao invs de nos prendermos s palavras, buscamosrevelar o sentido da narrativa no contexto do direito nacional. Da, ao sermos indagadossobre outras tantas tradues por ns desenvolvidas, lembrarmos aos questionadores que,para revelar com fidelidade o pensamento original, a traduo deve sempre ser umaverso do que foi dito em outra lngua.

    Ricardo Rodrigues Gama[1] Fuller, Lon L. The Case of the Speluncean Explorers, Cambridge, Massachusetts,U.S.A.: The Harvard Law Review Association, in Harvard Law Review, Vol. 62, n 4,February 1949.

  • SUPERIOR TRIBUNAL DE NEWGARTH ANO DE 4300

    1. Introduo

    Os acusados, processados pelo o crime de homicdio doloso, foram condenados apena de morte. Diante do inconformismo geral, expondo razes jurdicasrelevantssimas, eles recorreram da deciso do Tribunal do Condado de Stowfield para oSuperior Tribunal de Newgarth. Insistiram nas ambiguidades declinadas na decisocondenatria daquele Tribunal, cuja funo de exp-las coube ao juiz-presidente em seurelatrio.

    2. Voto do Juiz Truepenny

    Os quatro acusados so membros da Associao de Espeluncologia[2], umaorganizao de amadores interessados na explorao de cavernas. No incio do ms demaio de 4299, acompanhados de Roger Whetmore, perodo em que tambm eramembro da associao, acessaram o interior de uma caverna de rochedo calcrio daespcie encontrada no planalto central desta regio do territrio nacional. Quando j seposicionavam bem distantes da entrada da caverna, verificou-se a ocorrncia de umdeslizamento. Os pedregulhos pesados acabaram por bloquear por completo a nicaentrada conhecida da caverna. Ao perceberem a difcil situao em que seencontravam, mantiveram todos os homens perto da entrada obstruda para esperar atque um agrupamento de salvamento removesse os detritos que os impediam de deixar apriso subterrnea.

    Por no terem Whetmore e os acusados retornado aos seus lares, a secretria daassociao foi notificada por suas famlias. Parece que os exploradores deixaramindicaes na matriz da sociedade a respeito da posio da caverna que se propuseramvisitar. Um agrupamento de salvamento foi prontamente enviado ao local.

    A tarefa de resgate revelou-se extremamente difcil. Foi necessrio ampliar asforas de resgate originais mediante repetidos acrscimos de homens e mquinas, quetinham de ser transportados remota e isolada regio, o que demandava elevadosesforos para acessar a caverna e larga despesa para desenvolver a operao.

    Um acampamento provisrio enorme de operrios, engenheiros, gelogos eoutros tcnicos, foi instalado. O trabalho de desobstruo foi muitas vezes frustrado porcontnuos deslizamentos de terra. Em um destes, dez trabalhadores contratadosmorreram enquanto tentavam desimpedir a entrada da caverna. A tesouraria daAssociao de Espeluncologia exauriu rapidamente seus fundos, com dinheiroconsidervel obtido, em parte, com a venda do montante de oitocentos mil ttulosassociativos com subscrio popular, e noutro extremo, com a subveno gerada deverbas pblicas. Isso tudo foi gasto antes mesmo de os homens serem libertados, objetivoatingido somente no trigsimo segundo dia aps acessarem o interior da caverna.

  • Desde que se soube que os exploradores tinham carregado com eles apenasescassas provises e se ficou tambm sabendo que no havia alimentao gerada poranimais ou vegetais na caverna, para possibilitar a subsistncia deles, temeu-se quemorressem por carncia alimentar antes de acessar o ponto em que se encontravam. Novigsimo dia do aprisionamento, soube-se que os exploradores tinham levado consigopara a caverna um rdio transmissor porttil capaz de receber e enviar mensagens.Instalou-se imediatamente um aparelho similar na base de resgate, estabelecendo-sedeste modo a comunicao com os desafortunados homens no interior da montanha.Pediram para ser informados acerca do tempo demandado para os liberarem.

    Os engenheiros encarregados pela operao de salvamento responderam queprecisavam de pelo menos dez dias, isso desde que no ocorresse novo deslizamento. Osexploradores perguntaram ento se havia algum mdico no acampamento, tendo sidopostos em comunicao com a equipe mdica, qual descreveram sua condio e aalimentao disponvel e logo solicitaram a opinio mdica acerca da probabilidade desobreviverem sem alimentos por mais dez dias. O chefe da equipe mdica respondeu-lhes que havia possibilidade mnima de sobrevivncia por tal perodo.

    O rdio transmissor dentro da caverna manteve-se silencioso pelo perodo de oitohoras. Quando a comunicao foi restabelecida, os homens pediram para falarnovamente com os mdicos, intento atingido. Whetmore, falando em seu prprio nome eem representao dos demais exploradores, indagou se eles seriam capazes desobreviver por mais dez dias se se alimentassem da carne humana de um deles.Relutantemente, o chefe da equipe mdica respondeu em sentido afirmativo. Whetmoreinquiriu se seria aconselhvel que tirassem a sorte para determinar qual dentre elesdeveria ser sacrificado. Nenhum dos mdicos presentes se disps a responder pergunta.

    Whetmore quis saber ento se havia um juiz ou outra autoridade governamentalque se dispusesse a responder ao questionamento. Nenhuma das pessoas integrantes damisso de salvamento se apresentou com disposio para assumir o papel de conselheironeste tema. Ele perguntou ento se algum pastor ou padre poderia responder quelaindagao, mas no se encontrou guia espiritual algum que quisesse faz-lo. Depois desseocorrido, no se receberam mais mensagens dos exploradores de caverna e,erroneamente como depois se evidenciou, levantaram a suposio de que as pilhas dordio dos exploradores tivessem descarregado. Quando os homens aprisionados foramfinalmente libertados, soube-se que, no vigsimo terceiro dia aps sua entrada nacaverna, Whetmore tinha sido assassinado e servido de alimento para seuscompanheiros.

    Dos interrogatrios dos acusados, que foi aceito pelo tribunal do jri, evidencia-seque Whetmore props primeiramente que buscassem nutrimento na carne de um deles,sem o que a sobrevivncia seria impossvel e todos morreriam. Foi tambm Whetmorequem props primeiramente o uso de algum mtodo de moldar o sorteio, chamando aateno dos acusados para um par de dados que casualmente trazia consigo. Os acusadosinicialmente relutaram em adotar um procedimento to desesperador, mas, tendo emconta tudo que j tinham conversado, eles concordaram com o plano proposto porWhetmore. Aps muita discusso de questes matemticas suscitados pela complexidade

  • do caso, o acordo foi alcanado finalmente sobre o mtodo a ser empregado para asoluo do problema: a utilizao dos dados.

    Entretanto, antes que estes fossem lanados, Whetmore declarou que desistia doacordo, pois havia refletido e decidido esperar outra semana antes de adotar umexpediente to horrendo e odioso. Os outros o acusaram de violao do acordo eprocederam ao lanamento dos dados. Quando chegou a vez de Whetmore um dosacusados atirou-os em seu lugar, ao mesmo tempo em que se lhe pediu para levantarquaisquer objees quanto correo do lano. Ele declarou que no tinha objees afazer. Tendo-lhe sido adversa a sorte, foi ento morto e serviu de alimento para osdemais.

    Aps o resgate dos acusados e, depois de terem permanecido internados algumtempo em um hospital onde foram submetidos a um tratamento para desnutrio echoque emocional, foram denunciados pelo homicdio de Roger Whetmore. Na fase dejulgamento, depois de ter sido concluda a fase de produo de provas, um dos juradoscom a funo de porta-voz deles (de profisso advogado) perguntou ao juiz se eles, osjurados, poderiam emitir uma deciso especial, deixando ao juiz togado o julgamento se,em conformidade com os fatos provados, havia autoria delitual ou no dos acusados.Depois de alguma discusso, tanto o representante do Ministrio Pblico quanto oadvogado de defesa, manifestaram o consentimento para a adoo de tal procedimento,o qual foi homologado pelo juiz.

    Em longa deciso especial, os jurados acolheram as provas dos fatos comoalhures relatados e, ainda que com base nos mesmos fundamentos os acusados fossemconsiderados culpados, deveriam eles ser condenados pelos mesmos fundamentos. Combase nesse veredicto o juiz de primeira instncia decidiu que os rus eram culpados doassassinato de Roger Whetmore. Em consequncia sentenciou-os forca, no lhepermitindo a legislao nacional nenhuma amenizao com respeito pena a serimposta. Dissolvido o jri, os jurados enviaram uma petio conjunta ao chefe do PoderExecutivo pedindo que a sentena fosse comutada em priso de seis meses. O juiz deprimeira instncia endereou uma petio similar mesma autoridade. At o momento,porm, nada resolveu o Executivo, aparentemente esperando pela nossa decisoprovedora no presente recurso.

    Decidindo este extraordinrio caso, parece-me que os jurados e o juiz de primeirainstncia seguiram uma trajetria que era no somente correta e sbia, mas a nica viaque lhes restava aberta em face do texto legal. Os ditames de nossa legislao so bemconhecidos: Quem quer que prive intencionalmente a outrem da vida ser punido com amorte. N.C.S.A. (n.s.) 12-A. Esta regra legal no permite exceo alguma aplicvel espcie, porm, a nossa simpatia inclina-nos a ter em considerao a trgica situao emque esses homens foram envolvidos.

    Em um caso desta natureza, o princpio da clemncia do poder executivo pareceadmiravelmente apropriado para mitigar os rigores da legislao, razo por queproponho aos meus colegas que sigamos o exemplo do jri e do juiz de primeirainstncia, solidarizando-nos com as peties que enviaram ao chefe do Poder Executivo.H sobejas razes para acreditar que esses requerimentos de clemncia sero deferidos,

  • vindo como vm daqueles que estudaram o caso e tiveram a oportunidade defamiliarizar-se cabalmente com todas as suas circunstncias. altamente improvvelque o chefe do Poder Executivo denegue estas solicitaes, a menos que ele prpriofosse realizar instrues probatrias to extensas como aquelas efetuadas em primeirainstncia, cuja durao alcanou trs meses. A realizao de igual instruo (queequivaleria a um outro julgamento do caso) seria dificilmente compatvel com a funodo Executivo, como normalmente acontece. Eu penso que podemos, portanto, presumirque alguma forma de clemncia ser estendida aos acusados. Se isto for feito, a justiaser realizada sem macular o texto ou o esprito de nossa legislao e sem oferecerincentivo algum sua transgresso.

    3. Voto do Juiz Foster

    Espanta-me que o presidente do Tribunal, em esforos dispendiosos para escapars dificuldades deste trgico caso, adote e propunha a seus colegas uma soluosimultaneamente srdida e bvia. Eu acredito que h algo mais do que o destino destesdesafortunados exploradores em juzo neste caso; encontra-se em julgamento a prprialegislao do nosso Pas. Se este Tribunal declara que esses homens cometeram umcrime, nossa lei ser condenada no tribunal do senso comum, inobstante o que aconteaaos indivduos interessados neste recurso de apelao. Pois, para que ns sustentemos quea lei que fazemos observar e enunciamos nos compele a uma concluso da qual nosenvergonhamos e da qual apenas podemos escapar apelando a uma exceo que seencontra na dependncia do capricho pessoal do chefe do Executivo, parece-meequivaler a admitir-se que ela no incorpora os preceitos bsicos para a realizao dajustia.

    No que me concerne, no creio que nossa lei conduza obrigatoriamente monstruosa concluso de que estes homens so assassinos. Ao contrrio, eu acredito queela os declara inocentes da prtica de qualquer crime. Fundamenta-se a concluso sobreduas premissas independentes, cada uma das quais por si prpria suficiente parajustificar a absolvio dos acusados.

    A primeira destas premissas desperta sentimento de oposio enquanto no forconsiderada de maneira imparcial. Afirmo que o nosso direito em vigor, ou positivo,incluindo todas as suas disposies legisladas e todos seus precedentes jurisprudenciais, inaplicvel a este caso e que este se encontra regido pelo que os antigos escritores daEuropa e da Amrica chamavam a lei da natureza[3]. Esta concluso baseia-se naproposio de que o nosso direito positivo pressupe a possibilidade da coexistncia doshomens em sociedade. Emergindo uma situao que torne a coexistncia dos homensimpossvel, a partir de ento a condio que se encontra subjacente a todos os nossosprecedentes jurisprudenciais e disposies legisladas cessou de existir. Desaparecendoesta condio, minha opinio de que a coercibilidade da legislao em vigordesaparece com ela. Ns no estamos habituados a aplicar a mxima cessante rationelegis, cessat et ipsa lex[4] ao conjunto do nosso ordenamento jurdico, mas creio que este um caso em que esta mxima deva ser aplicada.

  • A proposio, segundo a qual, todo o direito positivo fundamenta-se napossibilidade de coexistncia dos homens parece soar estranhamente, no porque averdade que ela contm seja estranha, mas simplesmente em razo de que se trata deuma verdade to bvia e to persuasiva que raramente temos ocasio para express-laem palavras. semelhana do ar que respiramos, ela penetra de tal modo na nossa vidaque nos esquecemos de sua existncia, at que dela somos subitamente privados.Quaisquer que sejam os objetivos buscados pelos vrios ramos do nosso direito, mostra-nos a reflexo que todos eles esto voltados no sentido de facilitar e de melhorar acoexistncia dos homens e de regular com justia e equidade as relaes resultantes desua vida em territrio comum. Quando a suposio de que os homens podem viver emcomum deixa de ser verdadeira, como obviamente sucedeu nesta extraordinria situaoem que a conservao da vida apenas tornou-se possvel pela privao da vida, aspremissas bsicas subjacentes a toda a nossa ordem jurdica perderam seu significado esua coercibilidade.

    Se os trgicos acontecimentos deste caso tivessem ocorrido a uma milha dedistncia de nossos limites territoriais, ningum pretenderia que nossa lei fosse aplicada aeles. Ns reconhecemos que a jurisdio repousa sobre base territorial. As razes desseprincpio no so de maneira alguma bvias e raramente so examinadas. Pensamos queesse princpio baseia-se na suposio de que s possvel impor-se uma nica ordemjurdica a um grupo de homens se eles vivem juntos nos limites de uma poro dasuperfcie terrestre. A premissa segundo a qual os homens devem agrupar-se paracoexistir pode ser escorada no princpio da territorialidade, da emerge a ideia de queassim se elaboram todas as regras jurdicas. Agora, eu sustento que um caso pode serremovido da esfera de abrangncia coercitiva de uma ordem jurdica tanto por razes deordem moral quanto por razes de ordem geogrfica. Observando com ateno ospropsitos do direito e do governo e as premissas subjacentes ao nosso direito positivo,conclumos que esses homens, quando tomaram sua trgica deciso, estavam todistantes de nossa ordem jurdica como se estivessem a mil milhas alm de nossoslimites territoriais. Mesmo em um sentido fsico, sua priso subterrnea estava separadados nossos tribunais e dos nossos serventurios da justia por uma slida cortina rochosaque s pde ser removida depois dos maiores dispndios de tempo e de esforo.

    Conclumos, por conseguinte, que no momento em que Roger Whetmore foimorto pelos acusados, eles se encontravam no em estado sociologista, mas em estadonatural, isso na linguagem dos doutrinadores do sculo XIX. A consequncia disto que alegislao a ser aplicada a eles no a do Estado, tal como foi elaborada e sancionada,mas aquela prpria das circunstncias vivenciadas por eles. No hesitamos em dizer que,em conformidade com este princpio, aos acusados no podemos imputar qualquercrime.

    O que estes homens fizeram realizou-se em cumprimento de um pacto aceito portodos e proposto primeiramente pelo prprio Whetmore. Desde o momento em que seevidenciou a extraordinria e difcil situao pela qual se achavam todos, tornaram-seinaplicveis os princpios usuais reguladores das relaes entre os homens e, emconsequncia, emergiu a necessidade de elaborarem uma Carta Constitucional que

  • refletisse a nova ordem estatal em que se encontravam. reconhecido desde a Antiguidade que o princpio fundamental do direito ou

    governo deve ser baseado na noo de pacto ou convnio. Os antigos pensadores,especialmente aqueles do perodo entre 1600 e 1900, tinham por hbito estabelecer asbases do prprio governo em um suposto contrato social. Os cticos ressaltaram que estateoria contradizia os fatos conhecidos da histria e que no havia evidncia cientficaalguma capaz de apoiar a noo de que qualquer governo em qualquer tempo tivessesido estabelecido pelo modo defendido por esta teoria. Os moralistas replicaram que, se opacto era uma fico do ponto de vista histrico, esta noo fornecia a nica justificaotica para os poderes do estado, inclusive aquele de pr fim a vida, que tambm poderiaser aqui ser assimilado. Os poderes estatais podem somente ser justificados moralmente,isso em razo de ser a circunstncia de que homens razoveis se posicionariam deacordo e os aceitariam se vislumbrassem a satisfao da necessidade de construirnovamente alguma ordem capaz de tornar possvel a vida em sociedade.

    Felizmente, as perplexidades que incomodavam os antigos no atingem nosso pas. fato historicamente comprovado que nosso governo foi fundado mediante um pacto ouum acordo de homens livres. No perodo subsequente Grande Espiral, com bem atestaa prova arqueolgica, os sobreviventes desse holocausto voluntariamente reuniram-se eredigiram uma Carta Poltica do Estado. Os escritores sofistas levantaramquestionamentos a respeito do poder desses remotos contratantes de obrigar geraesfuturas, mas permanece o fato de que nosso governo remonta em uma linha ininterruptaquela Carta Poltica original.

    Se, consequentemente, nossos carrascos tiverem o poder de pr fim vida doshomens, se nossos juzes tiverem o poder de determinar o despejo dos locatrios emmora, se nossas autoridades policiais tiverem o poder de encarcerar o divertido bbado,estes poderes encontram justificativa moral naquele pacto primitivo celebrado pelosnossos antepassados. Se ns no podemos encontrar fonte mais elevada para nossaordem jurdica, que outra mais alta, deveramos esperar que estes desventuradosesfomeados estabelecessem para o ordenamento que adotaram para eles mesmos?

    Eu acredito que a linha de argumentao que termino de expor no admiteimpugnao racional alguma. Eu sinto que ela ser provavelmente recebida com certainquietao por muitos que venham a l-la, os quais inclinar-se-o a suspeitar que algumsofisma oculto deve encontrar-se base de uma demonstrao que conduz a tantasconcluses pouco familiares. A fonte deste desconforto , entretanto, facilmenteidentificvel. As condies usuais da existncia nos inclinam a considerar a vida humanaum valor absoluto, que no pode ser sacrificado em circunstncia alguma. H muitafico nesta concepo, mesmo quando aplicada s relaes ordinrias da sociedade.Tivemos um exemplo desta verdade no prprio caso que est diante de ns. Deztrabalhadores morreram no trabalho de remoo de rochas da entrada da caverna. Oscoordenadores da operao e os funcionrios pblicos no sabiam que dirigiam aoperao de salvamento, que os esforos que estavam empreendendo eram perigosos eenvolviam um srio risco para as vidas dos trabalhadores que os estavam executando? Seno parece apropriado que estas dez vidas tenham sido sacrificadas para salvar s dos

  • cinco exploradores, a que ttulo diremos ser compreensvel que estes exploradoresexecutassem um acordo para salvar quatro vidas em detrimento de uma?

    Qualquer rodovia, qualquer tnel ou qualquer edifcio que ns projetamos envolveum risco vida humana. Examinando estes projetos em conjunto, podemos calcularcom alguma preciso quantas mortes a sua construo ir demandar; os estatsticospodem dizer o custo mdio em vidas humanas de mil milhas de uma rodovia de concretode quatro pistas. Contudo, deliberada e conscientemente, incorremos neste risco epagamos este custo na suposio de que os valores resultantes para aqueles quesobrevivem, superam a perda. Se estas coisas podem ser ditas em uma sociedadedesenvolvendo-se normalmente sobre a superfcie terrestre, o que se dever dizer dosuposto valor absoluto da vida humana na situao de desespero em que os rus e seucompanheiro Whetmore se encontravam?

    Com isto, concluo o primeiro fundamento do meu voto. O segundo fundamentoprossegue em outra direo, rejeitando hipoteticamente todas as premissas que formuleiat o momento. Concedo, para fins de argumentao, que eu esteja errado dizendo que asituao destes homens os subtrai incidncia do nosso direito positivo, e suponho quenossa legislao consolidada tenha o poder de penetrar quinhentos ps de rocha e impor-se sobre esses homens aprisionados.

    Naturalmente, agora perfeitamente claro que estes homens praticaram um atoque viola a literal expresso da norma legislada que declara daquele queintencionalmente mata a outrem deve ser tomado como um homicida. Mas, um dos maisantigos aforismas da sabedoria jurdica ensina que um homem pode afrontar a letra danorma legislada, sem infringir a prpria legislao. Toda proposio de direito positivo,quer contida em uma norma ou em um precedente jurisprudencial, deve ser interpretadaracionalmente luz de seu propsito evidente. Estamos diante de uma verdade toelementar e, dessa forma, apresenta-se desnecessrio o desenvolvimento desse assunto.As exemplificaes de sua aplicao so inumerveis e se encontram em todos ossetores do ordenamento jurdico. No caso Commonwealth v. Staymore , o acusado foicondenado tendo em vista uma norma que considera ato ilcito a conduta voltada aestacionar os automveis em determinadas reas, por um perodo superior a duas horas.O infrator tinha tentado retirar o seu carro, mas foi impedido de faz-lo porque as ruasencontravam-se obstrudas por uma manifestao poltica na qual ele no tomara parte,nem pudera prever[5]. Este Tribunal reformou a sentena, afastando a condenao,embora o caso se enquadrasse perfeitamente no enunciado literal da norma legislada.Outra vez foi verificada a mesma ocorrncia no caso de Fehler v. Neegas, o qual esteveperante este tribunal para interpretao do texto legal com posicionamento unnime, que um dispositivo trazia a palavra no que fora evidentemente transposta da posioem que deveria estar, passando para o final. Esta transposio encontrava-se em todas aspublicaes sucessivas do texto legal; em aparentemente negligncia, o equvoco no foinotado pelos redatores do texto legal ou mesmo pelos operadores do direito. Deveras,ningum seria qualificado para explicar como adveio tal engano, contudo, a aparnciaindicava o equvoco que, tendo em vista o que prescrevia a norma em seu conjunto, umdesvio tinha sido cometido, haja vista que a leitura literal de sua parte final tornava-a

  • incompatvel com todo texto precedente; igualmente, seguia incompatvel com o objetivodo texto inicial, bem como com o enunciado pelo prembulo. Este Tribunal recusou-se aaceitar a interpretao literal do texto da norma legislada, e, de fato, retificou sualinguagem, transpondo a palavra no para o seu exato lugar.

    Ao realizar a interpretao do dispositivo legal, devemos ter em mente que eleainda foi literalmente aplicado ao caso concreto. H sculos estabeleceu-se que matarem legtima defesa excludente de ilicitude[6]. Por outro lado, no h nada no textolegal que sugira esta exceo. As tentativas para conciliar a orientao jurisprudencialsobre a legtima defesa com o texto da lei so inmeras, muito embora em minhaopinio no constituam seno sofismas engenhosos[7]. A verdade que a argumentaoda excluso de ilicitude em prol da legtima defesa no permite a reconciliao, massomente com seu propsito. A verdadeira conciliao da excludente de ilicitude emfavor da legtima defesa com o dispositivo legal, segundo o qual constitui crime matar aoutrem, deve seguir a mesma linha de raciocnio. Um dos principais objetivossubjacentes a qualquer legislao penal o de afastar os homens da prtica do crime.Agora, evidente que se a lei tivesse declarado que o homicdio em legtima defesaconstitui crime, tal regra no poderia operar de maneira preventiva. Um homem cujavida seja ameaada repelir seu agressor e, para tanto, no importa o que a normalegislada possa dizer. Dessa forma, atentando para os objetivos principais da legislaocriminal, seguramente podemos declarar que esta norma legislada no se destinava a seraplicada aos casos de legtima defesa.

    Quando a razo da excludente da legtima defesa assim explicado, torna-seevidente que, precisamente, a mesma fundamentao lgica aplicvel ao casoanalisado por este Tribunal. Se no futuro, qualquer grupo de homens venha a encontrar-se na trgica situao dos acusados, podemos estar certos de que sua deciso de viver oumorrer no ser controlada pelas normas do Cdigo Penal. Nesse contexto, se ns lermoseste texto legal inteligentemente, manifesta a inadequao de sua aplicao a este caso.A subtrao desta situao da incidncia da norma justifica-se precisamente pelasmesmas consideraes que foram apresentadas pelos nossos predecessores em seusgabinetes, sculos atrs, ao caso da legtima defesa.

    H aqueles que levantam as vozes por crerem que se tratar de usurpao judiciale isso se d sempre que um tribunal, depois de analisar o propsito de uma norma, d ssuas palavras um significado imediatamente imperceptvel ao leitor casual, desatento aosobjetivos que ele busca alcanar. Sem reserva, deixe-me dizer enfaticamente que aceitoa proposio segundo a qual este Superior Tribunal deve obedincia s normas do pas eque ela exerce seus poderes em subservincia vontade devidamente expressa pelaCmara dos Deputados Federais. A linha de raciocnio que eu imprimi acima no pe aquesto de fidelidade s disposies legais, embora talvez seja possvel colocar a questoda distino entre fidelidade inteligente e fidelidade no-inteligente. Nenhumempregador deseja ter um funcionrio incapaz de ler nas entrelinhas. A empregadadomstica mais estpida sabe que quando lhe ordenado descascar a sopa e tirar aespuma das batatas, sua patroa no quer expressar o significado no que est dizendo. Elasabe tambm que quando seu patro lhe diz para soltar tudo e vir correndo, ele no

  • tem em mente a possibilidade de que, neste momento, ela esteja salvando uma crianaprestes a afogar-se. Certamente, ns temos direito a mesma atuao interpretativa queexpresse a inteligncia do Poder Judicirio. A correo de erros ou equvocos legislativosbvios no importa em substituir a vontade do poder legislativo, mas em faz-la maiseficaz. Em consequncia, sob qualquer ponto de vista que este caso comportar, concluoque os acusados devam ser considerados inocentes das coautorias do crime de homicdiocontra Roger Whetmore e que a sentena de condenao deva ser reformada.

    4. Voto do Juiz Tatting

    No cumprimento de meus deveres como juiz deste Tribunal, tenho sidonormalmente capaz de dissociar os aspectos emocionais e intelectuais de minhas reaese decidir o caso analisado inteiramente baseado no ltimo. Em exame deste trgico caso,sinto que me faltam os usuais recursos. No aspecto emocional, sinto-me dividido entre asimpatia por estes homens e um sentimento de averso e revolta com relao aomonstruoso ato que cometeram. Eu tinha a esperana que colocaria estas emoescontraditrias de um lado como irrelevantes e, por outro lado, para decidir o caso combase no convencimento lgico e em uma demonstrao convincente do resultadoreclamado por nossa legislao. Infelizmente no me permiti esta liberdade.

    Ao analisar o voto apresentado por meu colega Foster, nele encontro disparadascontradies e falcias. Deixe-nos comear pela sua primeira proposio: estes homensno estavam sujeitos nossa legislao porque no se encontravam em um estadosociologista, mas em um estado natural. Eu no estou convencido que isto seja assim, seem virtude da espessura da rocha que os aprisionou ou porque estavam famintos ouporque tinham estabelecido uma nova carta poltica, segundo a qual as regras usuais dedireito deviam ser suplantadas por um lano de dados. Outras dificuldades invadem-se.Se estes homens passaram da jurisdio da nossa legislao para aquela da lei natural,em que momento isto ocorreu? Foi quando a entrada da caverna foi obstruda, ou quandoa ameaa de morte por inanio atingiu um grau indefinido de intensidade, ou quando oacordo para jogar dados foi celebrado? Estas incertezas da doutrina proposta pelo meucolega so capazes de produzir dificuldades reais. Suponha-se, por exemplo, que umdestes homens tenha feito seu vigsimo primeiro aniversrio enquanto estava aprisionadono interior da montanha. Em que data teramos que considerar que ele alcanou amaioridade[8] quando atingiu os vinte e um anos, no momento em que se achava, porhiptese, subtrado dos efeitos de nosso ordenamento jurdico, ou quando foi libertado dacaverna e voltou a submeter-se ao imprio do que o meu colega denomina nosso direitopositivo. Essas dificuldades podem parecer facilmente superveis, no entanto, servemsomente para revelar a natureza fantasiosa da doutrina que capaz de origin-las.

    Mas no necessrio explorar mais estas sutilezas para demonstrar o absurdo daposio do meu colega. O Senhor Ministro Foster e eu somos os ministros nomeados parao Tribunal de Newgarth, empossados mediante o juramento de que aplicaramos as leisdeste Pas. Com que autoridade transformamo-nos em um tribunal da natureza? Ento, seesses homens encontravam-se sob o direito natural, de onde vem nossa autoridade para

  • estabelecer e aplicar aquela lei? Certamente ns no estamos sob um estado natural.Deixe-nos examinar o contedo deste cdigo de normas naturais que meu colega

    prope que adotemos e o apliquemos a este caso. Que cdigo desordenado e odioso este! um cdigo em que as normas reguladoras dos contratos assumem maiorimportncia do que aquela referente ao crime de homicdio. um cdigo segundo o qualum homem pode estabelecer um contrato vlido, conferindo poderes a seus semelhantesde comer seu prprio corpo. Alm disso, segundo os seus dispositivos, uma vez feito, talcontrato irrevogvel, e, se uma das partes tenta rescindi-lo, as outras podem tomar alegislao em suas prprias mos e execut-lo pela fora pois, embora meu colegasilencie, talvez por convenincia, h resciso contratual unilateral e o efeito dessaresciso do contrato feita por Whetmore interfere necessariamente em suaargumentao.

    Os princpios expostos por meu colega contm outras implicaes que no podemser toleradas. Argumenta meu colega que quando os acusados, em comum acordo,lanaram-se sobre Whetmore e o mataram (ns no sabemos como, talvez com golpesde pedras), eles estavam somente exercitando o direito que lhes fora conferido pelocontrato. Suponha-se, entretanto, que Whetmore tivesse escondido sob suas roupas umrevlver e que, quando visse os rus se aproximando para o matar, disparasse o revolvere os matasse a tiros para conservar sua prpria vida. O raciocnio de meu colegaaplicado a estes fatos transformaria Whetmore em um homicida, uma vez que aexcludente da legtima defesa ser-lhe-ia negada. Se seus atacantes estavam atuandolicitamente com a buscar de sua morte, ento, evidentemente, ele no mais poderiaescusar-se argumentando que estava defendendo sua prpria vida, da mesma forma queno poderia faz-lo um prisioneiro condenado que abate o carrasco enquanto tentalegalmente colocar o n em seu pescoo.

    Todas estas consideraes tornam impossvel para que eu aceite a primeira partedos argumentos de meu colega. Eu no posso nem mesmo aceitar sua noo de que esteshomens encontravam-se regidos por um cdigo de normas da natureza, que este Tribunalestaria obrigado a aplicar-lhes, nem posso admitir as regras odiosas e desnaturadas queele pretende que este cdigo contenha. Agora, venho segunda parte do voto do meucolega, em que ele procura demonstrar que os rus no violaram os dispositivos legais doN.C.S.A. (n.s.) 12-A. Aqui, o raciocnio, ao invs de ser claro, parece-me nebuloso eambguo, embora meu colega no parea desatento s dificuldades inerentes s suasdemonstraes.

    A essncia da argumentao de meu colega pode ser enunciada nos seguintestermos: nenhuma norma, qualquer que seja seu texto, deveria ser aplicada de modo acontradizer seu propsito. Um dos objetivos de qualquer norma criminal a preveno.A aplicao da legislao, qualificando como crime matar a outrem, neste caso peculiarcontradiria seu propsito, pois impossvel crer que os dispositivos do Cdigo Penalpudessem atuar de maneira preventiva relativamente a homens colocados em face daalternativa de viver ou morrer. O raciocnio por meio da qual esta exceo encontradana legislao , segundo observa o meu colega, o mesmo que conduz admissibilidadeda excludente da legtima defesa.

  • primeira vista esta demonstrao parece muito convincente. A interpretaofeita por meu colega do fundamento lgico da excludente da legtima defesa encontra-se, de fato, em conformidade com a deciso deste Tribunal Commonwealth v. Parry um precedente jurisprudencial que encontrei estudando este caso. Embora o caso deCommonwealth v. Parry parea ter sido geralmente omitido nos textos e decisessubsequentes, encontra-se sem dvida alguma, de acordo com a interpretao que meucolega deu excludente da legtima defesa.

    Entretanto, deixe-me agora esboar rapidamente as perplexidades que meocorrem quando examino de modo mais atento o raciocnio de meu colega. verdadeque uma norma legislada deve ser aplicada segundo seu propsito e que u m dospropsitos reconhecidos da legislao penal a preveno. A dificuldade que outrosobjetivos so tambm imputados legislao penal. Afirma-se que um de seuspropsitos assegurar uma descarga ordenada instintiva necessidade de retribuio:Commonwealth v. Scape . Tambm se afirma que sua finalidade a reabilitao dodelinquente: Commonwealth v. Makeover. Outras teorias tm sido propostas. Supondo quens devamos interpretar uma espcie normativa luz de seu propsito, o que deveremosfazer quando tiver vrios propsitos ou quando estes propsitos forem questionados?

    Uma dificuldade similar apresentada pela circunstncia de que, embora hajafundamento jurisprudencial para a interpretao dada por meu colega excludente dalegtima defesa, tambm h outro critrio jurisprudencial conferindo a esta excludenteum fundamento lgico diferente. Certamente, at ter tomado conhecimento da decisono caso de Commonwealth v. Parry, eu no conhecia interpretao como a dada por meucolega. A doutrina ensinada nos cursos de direito, memorizada por geraes deacadmicos de direito, diz expressamente o seguinte: a norma a respeito do homicdiorequer um ato intencional. O homem que atua para repelir uma ameaa agressiva suaprpria vida no age intencionalmente, mas em resposta a um impulso profundamenteenraizado na natureza humana. Eu suspeito que dificilmente exista um bacharel emdireito neste Pas que no esteja familiarizado com esta linha de raciocnio,especialmente porque este um dos pontos preferidos nos exames de ordem visando oexerccio da advocacia.

    Assim, observe-se que a explicao familiar para a excludente da legtima defesaque terminei de expor obviamente no pode ser aplicada analogicamente aos fatos destecaso. Estes homens, no s agiram intencionalmente, mas de forma bastante deliberada edepois de horas de discusso a respeito do que fariam. Outra vez nos encontramos diantede um caminho bifurcado, com uma linha de raciocnio conduzindo-nos em uma nicadireo, mas com sentidos exatamente opostos. Esta perplexidade situa-se nanecessidade de contrastar duas interpretaes, uma incorporada num precedentepraticamente desconhecido deste Tribunal e a outra constituindo parte da tradiojurdica ensinada nas nossas faculdades de direito, mas tanto quanto eu sei nunca foiadotada em qualquer deciso judicial.

    Eu reconheo a relevncia dos precedentes jurisprudenciais citados por meucolega, a respeito do deslocado no e ao infrator que estacionou alm do tempo

  • permitido. Mas o que faremos com os marcos da nossa jurisprudncia, sobre o que meucolega novamente silencia? Isto o caso de Commonwealth v. Valjean . Embora o casoesteja um tanto obscuramente transcrito, nele evidencia-se que o acusado foi processadopelo furto de um po e ofereceu como defesa a circunstncia de que se encontrava emuma condio prxima da morte por inanio[9]. O Tribunal recusou-se a aceitar estadefesa. Se a fome no pode justificar o furto de um alimento natural e saudvel, comopode ela justificar que se assassine e se devore um homem? Mais uma vez, se nsolhamos o litgio em termos de preveno, ser provvel que um homem morra mngua para evitar uma sentena de priso pelo furto de um po? As demonstraes demeu colega nos compeliriam a decidir em sentido contrrio ao disposto no caso deCommonwealth v. Valjean e de muitos outros precedentes construdos a partir deste caso.

    Outra vez, tenho dificuldade em afirmar que nenhum efeito preventivo poderiaser atribudo a uma deciso segundo a qual estes homens fossem julgados culpados dehomicdio. O estigma da palavra homicdio tal que eu acredito ser muito provvel que,se estes homens tivessem sabido que seu ato era considerado como homicdio pelalegislao, teriam esperado mais alguns dias pelo menos antes de levar a cabo seu plano.Durante este tempo algum auxlio inesperado poderia ter chegado. Percebo que estaobservao somente reduz a distino a uma questo de grau, sem que a destruacompletamente. certamente verdade que o elemento de preveno seria menor nestecaso do que naquele que normalmente decorre da aplicao da legislao penal.

    H ainda uma dificuldade na proposta de meu colega Foster, qual seja a deestabelecer uma exceo na legislao em favor deste caso, embora novamentenenhuma dvida transparea em seu voto. Qual ser o alcance da exceo? No caso, oshomens tiraram a sorte e a prpria vtima no incio concordou com o que foi contratado.O que decidiramos se Whetmore tivesse recusado desde o comeo a participar doplano? Seria permitido que a maioria decidisse contra a sua vontade? Ou suponha-se quenenhum plano fosse adotado e que os outros simplesmente conspirassem para causar amorte de Whetmore, e, como justificativa da atitude, dissessem que ele estava emcondio fsica mais frgil. Ou, ainda, que um plano de seleo, baseado numajustificao diferente daquela aqui adotada, fosse seguido, como, por exemplo, se osoutros fossem ateus e insistissem que Whetmore deveria morrer porque era o nico queacreditava na vida alm da morte. Estes ilustraes poderiam ser multiplicadas, mas jse mostram suficientes para revelar as inmeras dificuldades ocultas contidas noraciocnio de meu colega.

    No curso da reflexo que realizo, posso identificar a complexidade do problemacom o qual estou lidando e a impossibilidade de ocorrncia idntica, pois improvvelque outro grupo de homens seja levado a cometer novamente o terrvel crime que orajulgamos. De qualquer forma, continuando com a reflexo, mesmo que ns tivssemoscerteza de que um caso similar jamais ocorresse, no so os exemplos que dei, masdemonstram a falta de qualquer princpio coerente e racional na deciso que meu colegaprope? A aferio de um princpio no deve ser promovido pelas concluses que eleacarreta, sem que se faa referncia a eventuais problemas decorrentes de um litgiofuturo? Ainda, se isto for assim, porque ns juzes deste Tribunal, repetidas vezes

  • discutimos a probabilidade de aplicar no futuro um princpio que a soluo do caso queora julgamos requer? esta uma situao em que uma linha de raciocnio,originariamente inadequada, chegou a ser aplicada por via de um precedentejurisprudencial, gerando esta uma obrigao de aplicar a sano?

    Quanto mais examino este caso e penso sobre ele, mais profundamente envolvidoemocionalmente me sinto. Minha mente fica enredada nas malhas das redes que euprprio arremesso para o meu prprio salvamento. Eu acredito que quase todaconsiderao que interesse soluo do presente caso contrabalanada por outraoposta, conduzindo em sentido tambm oposto. Meu colega Foster no me forneceu, nemeu pude descobrir por mim prprio, frmula alguma capaz de resolver as dvidas quepor todos os lados me acossam.

    Eu dei a este caso o maior raciocnio de que sou capaz. Durmo mal desde que nosdiscutimos o caso no Tribunal. Quando me sinto inclinado a aceitar o ponto de vista demeu colega Foster, logo sou repelido pela impresso de que seus argumentos sointelectualmente deficientes e completamente abstratos. De outro lado, quando meinclino no sentido de manter a condenao, afrontam-me o absurdo de condenar esteshomens morte quando a salvao de suas vidas custou as de dez heroicos operrios.Provoca-me pesar o fato de representante do Ministrio Pblico oferecer denncia coma acusao pelo crime homicdio. Se tivssemos um tipo penal descrevendo como crimeo fato de comer carne humana, esta teria sido uma acusao mais apropriada. Senenhuma outra acusao adequada aos fatos deste caso podia ser formulada contra osacusados, teria sido prefervel, penso, no t-los denunciado. Infelizmente, entretanto,estes homens foram processados e julgados e, em decorrncia disto, ns nos vemosenvolvidos por este litgio infeliz.

    Uma vez que me revelei completamente incapaz de afastar as dvidas legais queme assediam; com pesar que anuncio algo que inacreditvel, ou seja, no hprecedentes na histria deste Tribunal. Por conta disso, declaro minha retirada destecaso[10].

    5. Voto do Juiz Keen

    Eu gostaria de comear deixando de lado duas questes que no so dacompetncia deste Tribunal.

    A primeira delas consiste em saber se a clemncia do poder executivo deveria serconcedida aos rus caso a condenao seja confirmada. Esta , porm, segundo o nossosistema constitucional de diviso de poderes, uma questo da competncia do chefe doPoder Executivo e no nossa. Eu desaprovo, portanto, aquela passagem do voto dopresidente deste Tribunal em que ele efetivamente d instrues ao chefe do PoderExecutivo acerca do que deveria fazer neste caso e sugere alguns inconvenientes queadviriam se tais instrues no fossem atendidas. Esta uma confuso de funes dospoderes estatais uma confuso em que o judicirio deveria ser o ltimo a incorrer. Eudesejo esclarecer que se eu fosse o chefe do Poder Executivo, iria mais longe no sentidoda clemncia do que aquilo que lhe foi requerido. Eu concederia perdo total a estes

  • homens, pois creio que eles j sofreram o suficiente para pagar por qualquer crime quepossam ter cometido. Quero ser compreendido por esta observao ter sido feita naminha condio particular de cidado que, por razo de seu ofcio, adquiriu um ntimoconhecimento dos fatos deste caso. No cumprimento dos meus deveres como juiz nome incumbe dirigir instrues ao chefe do Poder Executivo, nem tomar emconsiderao o que ele possa ou no fazer, a fim de chegar minha prpria deciso quedever ser inteiramente guiada pela legislao deste Pas.

    A segunda questo que desejo colocar de lado diz respeito a decidir se o que esteshomens fizeram foi justo ou injusto, mau ou bom. Esta outra questo irrelevante aocumprimento de minha funo, pois, como fui empossado como juiz para aplicar, nominhas concepes morais, mas o ordenamento jurdico deste Pas. Ao colocar estaquesto de lado, penso que posso tambm excluir sem comentrio a primeira e a maiorporo potica do voto do meu colega Foster. O elemento de fantasia contido nosargumentos por ele desenvolvidos revelou-se suficientemente como uma tentativa umtanto solene do meu colega Tatting de encarar com seriedade aqueles argumentos.

    A nica questo que se apresenta para ser decidida por ns consiste em saber seos acusados, dentro do significado do N.C.S.A. (n.s.) 12-A, privaram intencionalmenteda vida Roger Whetmore. O texto exato da norma o seguinte: Quem quer que,intencionalmente, prive a outrem da vida ser punido com a morte. Agora, eu devo suporque qualquer observador imparcial, que queira extrair destas palavras o seu significadonatural, conceder imediatamente que os acusado privaram intencionalmente RogerWhetmore da vida.

    Ento, de onde aparecem as dificuldades do caso e a necessidade de tantaspginas de discusso a respeito do que deveria ser to bvio? Qualquer que seja a formaatormentada de apresentao, todas as dificuldades convergem a uma nica fonte, qualseja aquela consistente na indistino dos aspectos legais e morais do presente caso. Parao apresentar sem cortes, meus colegas no apreciam o fato de exigir a norma escritapara a condenao dos acusados. Nem a mim isto no causa prazer, mas, diferena demeus colegas, eu respeito o dever de um cargo que requer que se deixem as predileespessoais de lado, ao interpretar e aplicar a legislao deste Pas. Todavia, naturalmente,meu colega Foster no admite que ele seja motivado por uma averso pessoal legislao escrita. Ao contrrio, ele desenvolve uma linha de argumento familiar, deacordo com a qual o Tribunal pode desrespeitar o enunciado de uma norma expressa,quando algo nela no contido, denominado seu propsito, pode ser empregado parajustificar o resultado que o tribunal considerar apropriado. Por se tratar de uma velhacontrovrsia, entre meu colega e eu, gostaria, antes de discutir a aplicao particulardeste ponto de vista aos fatos deste caso, de dizer algo acerca do fundo histrico destecontrovertido tema, bem como de suas implicaes relativamente legislao e aogoverno em geral.

    Havia uma poca em que, neste pas, os juzes efetivamente legislavamlivremente e todos ns sabemos que durante esse perodo algumas de nossas normaslegisladas foram praticamente reelaboradas pelo Poder Judicirio. Isto ocorreu em um

  • momento em que os princpios aceitos pela cincia poltica no designavam de maneirasegura a hierarquia e a funo dos vrios poderes do Estado. Ns todos conhecemos aconsequncia trgica desta indistino atravs da breve guerra civil que resultou doconflito entre o Poder Judicirio, de um lado, e os Poderes Executivo e Legislativo, deoutro. No h necessidade alguma de recontar aqui os fatores que contriburam para estamalsinada luta pelo poder, embora seja sabido que entre eles se incluam o carter poucorepresentativo da Cmara de Deputados, resultante de uma diviso do Pas em distritoseleitorais que no mais correspondiam realidade da distribuio da populao, bemcomo forte personalidade e vasta popularidade daquele que era ento o presidente doTribunal. suficiente observar que aqueles dias passaram e que, em lugar da incertezaque ento reinava, ns agora temos um princpio bem determinado consistente nasupremacia do ramo legislativo na diviso de poderes do estado. Desse princpio decorrea obrigao do Poder Judicirio de aplicar fielmente a legislao escrita e de interpret-la de acordo com seu significado evidente, sem referncia aos nossos desejos pessoais ouas nossas concepes individuais da justia. No me cabe indagar se o princpio queprobe a reviso judicial das normas legisladas, se ela est certa ou errada, desejvel ouindesejvel; observo meramente que este princpio se transformou numa premissa tcitasubjacente a toda ordem jurdica que jurei aplicar.

    Contudo, embora o princpio da supremacia do Poder Legislativo tenha sido aceitoem teoria durante sculos, to grande a tenacidade da tradio profissional e da forados hbitos de pensamento estabelecidos, que muitos juzes ainda no se adaptaram aopapel restrito que a nova ordem lhes impe. Meu colega Foster pertence a este grupo; suamaneira de lidar com as normas exatamente aquela de um juiz vivendo no sculopassado.

    Ns estamos familiarizados com o processo segundo o qual se realiza a reformajudicial dos dispositivos legais que desagradam aos magistrados. Qualquer um que tenhaseguido os votos escritos do ministro Foster ter oportunidade de ver sua utilizao emqualquer setor do direito. Pessoalmente, estou to habituado com o processo que, se meucolega se encontrasse eventualmente impedido, estou certo de que poderia escrever umvoto satisfatrio em seu lugar sem qualquer sugesto sua, bastando conhecer seu estilo eo efeito aplicvel sempre ao sentido da norma a ser aplicada ao caso concreto.

    O processo de reviso judicial requer trs etapas. A primeira delas consiste emadivinhar algum propsito nico ao qual serve a legislao. Isto feito, embora nenhumanorma em uma centena delas tenha um propsito nico e, ainda, os objetivos de quasetodas as normas sejam diferentemente interpretados pelos diferentes grupos nelasinteressados. A segunda etapa consiste em descobrir que um ser fabuloso, sendochamado legislador, na busca deste propsito imaginado, omitiu algo importante oudeixou alguma lacuna ou imperfeio em seu trabalho. Segue-se a parte final e maisreconfortante da tarefa a de preencher a lacuna assim criada. Quod eratfaciendum[11].

    A inclinao de meu colega Foster para encontrar lacunas na legislao fazlembrar a histria, narrada por um antigo autor, de um homem que comeu um par de

  • sapatos. Quando lhe perguntaram se os havia apreciado, ele replicou que preferira osburacos. Este o sentimento de meu colega com respeito s normas; quanto maislacunas elas tenham, mais ele as aprecia. Em resumo, no lhe agradam as normas.

    No se poderia desejar um caso melhor para exemplificar a natureza ilusriadeste processo de preenchimento de lacunas do que aquele ora pendente de julgamento.Meu colega pensa que sabe exatamente o que se buscou ao declarar que o fato homicida um crime. Segundo ele seria algo que se denomina preveno. Meu colega Tatting jmostrou quanto omissa esta interpretao. Mas eu penso que a problemtica atingenvel ainda mais profundo. Duvido muito que nossa legislao, ao conceber o homicdiocomo crime, tenha realmente um propsito em qualquer sentido ordinrio deste termo.Primeiramente, tal norma reflete uma convico humana profundamente enraizada,segundo a qual o assassinato injusto e que algo deve ser feito ao homem que o comete.Se ns fssemos forados a ser mais explcitos sobre a matria, provavelmente nosrefugiaramos nas mais sofisticadas teorias dos criminologistas, as quais, naturalmente,no se encontrariam na mente daqueles que elaboraram a norma legislada. Nspoderamos tambm observar que os homens executariam seu trabalho de maneira maiseficaz e viveriam mais felizes se fossem protegidos contra a ameaa de agressoviolenta. Tendo em mente que as vtimas de homicdios so freq uentem ente pessoasdesagradveis, ns poderamos adicionar a sugesto de que a eliminao de pessoasindesejveis no deva ser uma funo apropriada iniciativa privada, mas, pelocontrrio, constituir um monoplio estatal. Tudo isto lembra-me um advogado que, certaocasio, argumentou perante este Tribunal que uma norma sobre o exerccio damedicina era uma boa coisa porque levaria diminuio dos prmios de seguro de vida,eis que elevaria o nvel geral de sade. H quem pretenda que o bvio deve serexplicado.

    Se ns no sabemos a finalidade do 12-A, como podemos dizer que haja umapossvel lacuna nele? Como ns podemos saber o que pensaram seus elaboradoresacerca da questo de matar homens para com-los? Meu colega Tatting revelou umarepulso compreensvel, embora talvez ligeiramente exagerada, relativamente aocanibalismo. Como ns podemos saber que seus remotos antepassados no sentiram amesma repulsa em um grau mais elevado? Os antroplogos afirmam que o temorsentido em relao a um ato proibido pode crescer quando as condies de vida tribalcriam tentaes especiais sua prtica: o que ocorre com o incesto, que maisseveramente condenado entre aqueles cujas relaes comunitrias o tornam maisprovvel. Certamente, o perodo subsequente Grande Espiral trazia consigo implcitastentaes antropofagia. Talvez fosse em razo disso que nossos antepassadosexpressaram essa proibio de forma to larga e irrestrita. Tudo isto , por certo,conjetura, mas fica suficientemente claro que nem eu nem meu colega Foster sabemosqual seja o propsito do 12-A.

    As consideraes similares s que acabei de delinear so tambm aplicveis excludente da legtima defesa que desempenha um papel to importante no raciocniodos colegas Foster e Tatting. , sem dvida, verdade que em Commonwealth v. Parry umponto de vista expresso incidentalmente, sem fora de precedente, justificou esta

  • exceo, presumindo-se que o propsito da legislao penal a preveno. Tambmpode ser verdade que se tenha ensinado a vrias geraes de estudantes que a verdadeiraexplicao da excludente reside na circunstncia segundo a qual um homem que atuaem legtima defesa no age intencionalmente, e que os mesmos estudantes tenham sidoconsiderados habilitados ao exerccio da advocacia, repetindo o que seus professores lhesensinaram no curso de direito. Naturalmente, pude rejeitar estas ltimas observaescomo irrelevantes pela simples razo que os professores e examinadores ainda no tmdelegao de poderes para elaborar nossa legislao. Mas, outra vez, o problema real mais profundo. Tanto no que se refere legislao, como no que respeita exceo, aquesto no est no suposto propsito da legislao, mas no seu alcance. No queconcerne extenso da legtima defesa, tal como tem sido aplicada por este Tribunal, asituao clara: ela se aplica aos casos de resistncia a uma ameaa agressiva prpriavida de uma pessoa. Est, portanto, demasiado claro que este caso no se situa no mbitoda exceo, posto que evidente que Whetmore no fez nenhuma ameaa contra a vidados rus.

    O carter essencialmente ardiloso da tentativa do meu colega Foster de encobrirsua reformulao da legislao escrita com uma aparncia de legitimidade mostra-setragicamente no voto de meu colega Tatting. Neste, o ministro Tatting debate-seardorosamente para combinar o vago moralismo de seu colega com seu prpriosentimento de fidelidade norma escrita. O resultado desta luta no podia ser outro senoo que ocorreu um completo fracasso no desempenho da funo judicial. de todoimpossvel ao juiz aplicar uma norma tal como est redigida e, simultaneamente, refaz-la em consonncia com seus desejos pessoais.

    Agora eu sei que a linha de raciocnio que terminei de expor neste voto no seraceitvel por aqueles que cogitam to-somente dos efeitos imediatos de uma deciso eignoram as implicaes que podero advir no futuro em consequncia de assumir ojudicirio o poder de criar excees aplicao da legislao. Uma deciso rigorosanunca popular. Juzes tm sido exaltados na literatura por seus ardilosos subterfgiosdestinados a privar um litigante de seus direitos nos casos em que a opinio pblicajulgava errado faz-los prevalecer. Mas eu acredito que a exceo ao cumprimento dalegislao, levada a efeito pelo Poder Judicirio, faz mais mal a longo prazo do que asdecises rigorosas. As sentenas severas podem at mesmo ter certo valor moral,fazendo com que o povo sinta a responsabilidade em face da legislao, que, em ltimaanlise, trata-se de sua prpria criao, bem como relembrando-lhe que no h nenhumprincpio de perdo pessoal que possa aliviar os erros de seus representantes.

    Certamente, irei mais distante e direi que os princpios por mim expostos so maissadios para as nossas condies atuais; mais, ns teramos herdado um sistema jurdicobem melhor de nossos antepassados se estes princpios tivessem sido observados desde oincio. Por exemplo, com respeito excludente da legtima defesa, se nossos tribunaistivessem permanecido firmes na letra da norma, o resultado teria sido, indubitavelmente,a sua reviso legislativa. Naturalmente, tal reviso teria suscitado a colaborao defilsofos e psiclogos, e a regulamentao da matria, da resultante, teria uma basecompreensvel e racional, ao invs da miscelnea de verbalismos e distinesmetafsicas que emergiram do tratamento judicial e profissional.

  • Essas concluses finais esto, naturalmente, alm dos deveres que devo cumprirrelativamente a este caso, mas as enuncio porque sinto de modo profundo que meuscolegas esto pouco conscientes dos perigos implcitos nas concepes sobre amagistratura defendidas pelo meu colega Foster.

    Minha concluso a confirmao da sentena condenatria.

    6. Voto do Juiz Handy

    Eu escutei com perplexidade os tormentosos raciocnios que este caso trouxe baila. Nunca deixo de admirar a habilidade com que meus colegas lanam uma obscuracortina de legalismos sobre qualquer problema que lhes seja apresentado para decidir.Nesta tarde ouvimos arrazoados sobre as distines entre direito positivo e direito natural,o sentido e o propsito da legislao, funes judiciais e executivas, legislao oriunda dojudicirio e do legislativo. Meu nico desapontamento foi que ningum levantou aquesto da natureza jurdica do contrato celebrado na caverna se era unilateral oubilateral , e se no se poderia considerar que Whetmore desconsiderou a sua anunciaantes que se tivesse atuado com fundamento nela

    O que tm todas essas coisas a ver com o caso? O problema diante de ns decidir o caso, como funcionrios pblicos que somos, decidir o que devemos fazer comesses acusados. Esta uma questo de sabedoria prtica a ser exercida num contexto,no de teoria abstrata, mas de realidades humanas. Quando o caso examinado sob essaluz, penso ser um dos mais fceis de decidir dentre os que j foram processados peranteeste Tribunal.

    Antes de anunciar minhas prprias concluses acerca do mrito, eu gostaria dediscutir brevemente alguns dos problemas fundamentais envolvidos neste litgio questes sobre as quais meus colegas e eu temos estado divididos desde que ingressei nacarreira de magistrado.

    Nunca fui capaz de convenc-los de que o governo um assunto humano, e queos homens so governados no por palavras sobre o papel ou por teorias abstratas, maspor outros homens. Eles so bem governados quando seus governantes compreendem ossentimentos e concepes do povo. Por outro lado, so mal governados quando se fizerausente esta compreenso.

    De todos os ramos do governo, o Judicirio o que tem maiores possibilidades deperder o contato direto com o homem comum. As razes para isto so, naturalmente,bastante bvias. Ao passo que o povo reage diante de uma situao conforme ela seapresenta em seus traos mais salientes, ns juzes dividimos a situao que nos apresentada em pequenos fragmentos. Os causdicos so contratados pelos antagonistas afim de analisar e dissecar. Juzes e promotores de justia rivalizam em ver quem capazde descobrir o maior nmero de dificuldades e distines em um s conjunto de fatos.Cada litigante tenta encontrar argumentao real ou imaginria, com a qual ir causarembarao s demonstraes do lado oposto. Para escapar deste embarao, ainda outrasdistines so inventadas e introduzidas na situao. Quando se sujeita determinados fatosa tal espcie de tratamento por um tempo considervel, verifica-se que o abandonocompleto de sua vida e de sua essncia, dele no restando seno um punhado de poeira.

  • Agora, de forma indiscutvel, sempre que houver regras e princpios abstratos, eupercebo que os juristas podero fazer distines. Em extenso limitada, a espcie decoisas que estou aqui descrevendo um mal necessrio que une todo o regulamentoformal das condutas humanas. No entanto, eu penso que a rea que realmente necessitade tal regulamentao est excessivamente estimada. H, naturalmente, algumas regrasde jogo fundamentais que devem ser aceitas como condio de existncia do prpriojogo. Eu incluiria entre elas aquelas relativas regulamentao das eleies, nomeao de funcionrios pblicos e ao tempo de exerccio nos respectivos cargos.Aqui, eu concordo que seja indispensvel limitar a matria a ser veiculada na defesa ediminuir a possibilidade de recorrer, isso at por aderir forma ou exaltar evidenteescrpulo quanto matria que est ou que no est sob a esfera de incidncia da norma.Talvez a rea de princpio bsico deva ser expandida para incluir outras regras jconhecidas, tais como aquelas projetadas para preservar o sistema de liberdade privada.

    Mas, fora destes domnios, eu acredito que todos os funcionrios pblicos,inclusive os juzes, cumpririam melhor seus deveres se considerassem as formalidades eos conceitos abstratos como instrumentos.

    Eu penso que o bom gestor, o qual deveria ser tomado como modelo, aquele queadapta os procedimentos e princpios ao caso concreto, selecionando dentre os meios deque dispe os mais adequados obteno do resultado pretendido.

    A mais bvia vantagem deste mtodo de governo que ele nos permite cumprirnossas tarefas dirias com eficincia e senso comum. Meu apego a esta filosofia tem,entretanto, razes mais profundas. Eu acredito que somente com a reflexo que estafilosofia propicia podemos preservar a flexibilidade essencial se quisermos manternossas aes em uma conformidade razovel com os sentimentos daqueles que seacham submetidos nossa autoridade. Mais governos foram aniquilados e misriahumana mais intensa foi causada pela ausncia deste acordo entre governantes egovernados do que por qualquer outro fator que se possa discernir na histria. Desde omomento em que se introduz uma cunha entre a massa do povo e aqueles que dirigemsua vida jurdica, poltica e econmica, a sociedade destruda. Ento nem do direitonatural de Foster, nem da fidelidade do direito escrito de Keen, conseguiremos tirarqualquer proveito.

    Aplicando estas concepes ao caso em anlise, sua deciso se torna, conformetenho dito, demasiadamente fcil. A fim de demonstrar isso terei que divulgar certasrealidades que meus colegas, como pudico decoro, julgaram adequado passar emsilncio, ainda que delas tenham tanta conscincia quanto eu prprio.

    A primeira delas que este caso despertou um enorme interesse pblico aqui e noexterior. Quase todos os jornais e revistas publicaram artigos a esse respeito; os colunistascompartilharam com seus leitores informaes confidenciais relacionados aosmovimentos percebidos no Poder Executivo; centenas de cartas aos editores forampublicadas. Uma das grandes empresas jornalsticas fez uma sondagem de opiniopblica acerca da questo que pensa voc que o Superior Tribunal deveria fazer com osexploradores de cavernas? Aproximadamente noventa por cento expressaram a opiniode que os acusados deveriam ser perdoados ou deixados em liberdade, com uma espciede pena simblica. Com isso, est fechada a questo da tendncia da opinio pblica arespeito do caso. Alis, poderamos t-lo sabido sem submeter o caso a votao, com

  • base somente no senso comum ou mesmo observando que neste Tribunal hmanifestamente quatro homens e meio, ou seja, noventa por cento, que partilham daopinio comum.

    Isto torna bvio, no somente o que deveramos, mas o que devemos fazer, sedesejamos preservar entre ns e a opinio pblica uma escala de valores razovel edecente. O fato de declararmos estes homens inocentes no nos envolve em chicanaalguma ou meio enganoso indigno. Tambm no necessrio empregar qualquerprincpio de interpretao normativa que no esteja de acordo com o modo de procederdeste Tribunal. Certamente, absolvendo estes homens, nenhum leigo pensaria que nstivssemos desvirtuado a interpretao da legislao mais do que nossos predecessores ofizeram quando criaram a excludente da legtima defesa. Se uma demonstrao maisdetalhada do mtodo seguido para harmonizar nossa deciso com o dispositivo legal fossejulgada necessria, contentar-me-ia em fixar-me nos argumentos desenvolvidos nasegunda, e menos fantasiosa, parte do voto do meu colega Foster.

    Eu bem sei que meus colegas ficaro horrorizados pela minha sugesto para queeste Tribunal leve em conta a opinio pblica. Di-lo-o que a opinio pblica emotiva ecaprichosa, isso por se basear em meias verdades e por do ouvido a testemunhas queno esto sujeitas a interrogatrio cruzado (cross-examination)[12]. Dir-lhe-o ainda quea norma cerca o julgamento de um caso como este de cuidadosas garantias, destinadas aassegurar que a verdade ser conhecida e que qualquer considerao racional referentes possveis solues do caso ser tomada em considerao. Adverti-lo-o que todasestas garantias de nada servem se for permitido que a opinio pblica, formada foradeste quadro, tenha qualquer influncia na deciso.

    Mas detenhamo-nos imparcialmente em algumas das realidades da aplicao danossa legislao criminal. Quando um homem acusado de ter cometido um crime h,geralmente, quatro maneiras pelas quais se pode escapar da punio. Um deles consistena deciso do juiz, de acordo com a legislao aplicvel, de que ele no cometeu crimealgum. Esta , por certo, uma deciso que tem lugar em uma atmosferapreferencialmente formal e abstrata. Mas consideremos as outras trs maneiras segundoa s quais ele pode escapar da punio. So elas: 1)a inrcia do representante doMinistrio Pblico por entender que no se deve oferecer a denncia e, com isso, oprocesso criminal no tem incio; 2) a absolvio pelos jurados; 3) o perdo judicial oua clemncia do chefe do Poder Executivo. Pode algum pretender que estas decisessejam tomadas dentro de uma estrutura formal, rgida, de regras que impeam o erro defato, excluam fatores emocionais e pessoais e garantam que todas as formalidades legaissero observadas?

    correto dizer que no caso do jri procuramos restringir suas deliberaes aombito daquilo que juridicamente relevante, mas no nos podemos iludir acreditandoque esta tentativa seja realmente bem sucedida. No curso normal dos acontecimentos, ocaso de que ora nos ocupamos deveria ter sido julgado pelo jri em todos os seusaspectos. Se isto tivesse ocorrido, podemos estar certos de que teria havido umaabsolvio ou pelo menos uma diviso que teria impedido uma condenao. Se se tivessedado instrues ao jri no sentido de que a fome dos acusados e o pacto que firmaram

  • no constituem defesa acusao de homicdio, seu veredicto as teria quase quecertamente ignorado, torcendo a letra da norma mais do que qualquer um de ns seriatentado a fazer. evidente que a nica razo que impediu que isto sucedesse foi acircunstncia fortuita de ser o porta-voz do jri um advogado. Seus conhecimentoscapacitaram-no a imaginar uma frmula verbal que permitisse aos jurados furtarem-sede suas usuais responsabilidades.

    Meu colega Tatting expressa contrariedade por no ter o representante doMinistrio Pblico decidido o caso por si, abstendo-se de oferecer a denncia e instauraro processo. Estrito como no cumprimento das exigncias da teoria jurdica, ficariasatisfeito em ver o destino destes homens decidido fora do Tribunal pelo representante doMinistrio Pblico, fundado no senso comum. O presidente do Tribunal, por outro lado,desejaria que a aplicao do senso comum ficasse para o final, embora, como Tatting,no queira dele participar pessoalmente.

    Isto me leva parte conclusiva de minhas observaes, referente ao dever declemncia do poder executivo no presente caso. Antes de discutir este tpicodiretamente, eu quero fazer uma observao conectada com a tomada de opiniopblica. Como disse alhures, noventa por cento das pessoas pretende que o SuperiorTribunal deixe os acusados em inteira liberdade ou que se lhes aplique uma penameramente simblica. Os dez por cento restantes constituem um grupo de composiosingular com as mais curiosas e divergentes opinies. Um dos nossos peritos dauniversidade fez um estudo deste grupo e descobriu que seus membros dividem-se empadres determinados. Uma poro substancial deles assinante de excntricos jornaisde circulao limitada, os quais deram aos seus leitores uma verso distorcida dos fatosem causa. Alguns deles pensam que espelelogo significa canibal e que a antropofagiaconstitui um dogma adotado pela sociedade. Mas, o ponto sobre que pretendo chamar aateno este: embora quase todas as variedades e sugestivas opinies concebveisestivessem representadas neste grupo, no havia, tanto quanto sei, ningum nele, nem nogrupo majoritrio dos noventa por cento, que dissesse: penso que seria de bom alvitre queos tribunais condenassem estes homens forca e que, em seguida, outro poder do Estadoos absolvesse. Contudo, esta uma soluo que de certo modo dominou nossas discussese que o presidente deste Tribunal prope como um caminho atravs do qual ns podemosevitar a prtica uma injustia e ao mesmo tempo preservar o respeito legislao. Podeo senhor Presidente estar certo de que, se ele est preservando a moral de algum, estano seno a sua prpria, e no a do pblico, que nada sabe a respeito das distines porele empregadas. Eu menciono este assunto porque desejo enfatizar mais uma vez operigo de nos perdermos nos esquemas de nosso prprio pensamento e esquecer queestes esquemas frequentemente no projetam a mais suave sombra sobre o mundoexterior.

    Agora chego ao ponto mais crucial do presente caso, um trecho conhecido detodos ns neste Tribunal, embora meus colegas tenham julgado conveniente escond-losob suas togas. Trata-se da probabilidade alarmante de que, se a soluo do caso fordeixada ao chefe do Poder Executivo, ele se recusar a perdoar estes homens ousubstituir a pena por outra mais branda. Como todos ns sabemos o chefe do PoderExecutivo um homem hoje com a idade avanada e de princpios muito

  • conservadores. O clamor pblico normalmente produz nele um efeito avesso aoesperado. Como disse a meus colegas, acontece que a sobrinha de minha esposa ntimaamiga de sua secretria. Fui informado por esta via indireta, mas, segundo me parece,completamente fidedigna, que ele est firmemente determinado a no substituir asentena se ns julgarmos que estes homens transgrediram a legislao.

    Ningum lamenta mais do que eu a necessidade de apoiar-me, em uma matriato importante, em informao que poderia ser caracterizada como intriga. Sedependesse de mim, isto no aconteceria, porque eu adotaria a conduta sensata dereunir-me com o Executivo e examinar conjuntamente o caso, descobrindo quais soseus pontos de vista e talvez elaborando um programa comum para resolver a situao.Mas, naturalmente meus colegas jamais aceitariam a resoluo do problema destamaneira.

    Seus escrpulos em obter diretamente informaes exatas no os impede deestarem muito perturbados com o que souberam indiretamente. Seu conhecimento dosfatos que acabei de relacionar apenas explica porque o presidente deste Tribunal,normalmente um modelo de decoro, julgou conveniente agitar sua toga na face doExecutivo e amea-lo de excomunho se no substitusse a sentena condenatria.Suspeito que por isso se explica a proeza de levitao, empreendida pelo meu colegaFoster, pela qual toda uma biblioteca de livros jurdicos foi removida de sobre os ombrosdos acusados. Explica tambm o porqu de meu colega legalista Keen imitar Pooh-Bahna comdia antiga[13], caminhando de um lado para o outro do palco para dirigiralgumas observaes ao Poder Executivo em sua condio de cidado (permito-meobservar, incidentalmente, que o conselho do cidado privado Keen ser publicado nacoletnea de jurisprudncia deste Tribunal s expensas dos contribuintes).

    Eu devo confessar que, quanto mais velho me torno, mais perplexo fico ante arecusa dos homens em aplicar o senso comum aos problemas do direito e do estado, eeste caso verdadeiramente trgico aprofundou meu sentimento de desencorajamento edesnimo. Eu desejo somente poder convencer meus colegas da sabedoria dos princpiosque tenho aplicado ao ofcio de juiz desde que a assumi o cargo. A propsito, por umaespcie de um triste fechar de um crculo, deparei-me com questes semelhantes aosque ora aqui se esboam, justamente no primeiro caso que julguei como juiz de primeirainstncia do Tribunal do condado de Fanleigh.

    Uma seita religiosa expulsara um sacerdote que, segundo se dizia, tinha seconvertido aos princpios e prticas de uma seita rival. O sacerdote publicou uma notaacusando os chefes da seita. Destacados membros leigos dessa igreja anunciaram umareunio pblica em que se propunham explicar a posio da mesma. O sacerdote assistiua essa reunio. Alguns disseram ter ele entrado furtivamente, utilizando-se de umdisfarce; o sacerdote declarou em seu testemunho que tinha entrado normalmente comoum membro do culto. De qualquer forma, quando os discursos comearam, ele osinterrompeu com certas perguntas relacionadas a outros casos religiosos e fez algumasdeclaraes em defesa de seus prprios pontos de vista. Foi atacado por participantes dareunio e submetido a intenso espancamento, do qual lhe resultou, dentre outrosferimentos, uma fratura na mandbula. O sacerdote intentou uma ao indenizatriacontra a associao patrocinadora da reunio e apontou dez indivduos como seus

  • agressores.Ao chegarmos fase de julgamento, o caso pareceu-me, a princpio, muito

    complicado. Os advogados levantaram mltiplos problemas legais. Havia difceisquestes concernentes admisso da prova e relativamente demanda contra aassociao, alguns problemas girando em torno da questo de saber-se se o religiosohavia se insinuado ilicitamente na reunio ou se havia recebido autorizao para delaparticipar. Como novio na magistratura, sentia-me impaciente por aplicar meusconhecimentos adquiridos na faculdade de direito, e logo comecei a estudar estasquestes atentamente, lendo todas as fontes mais autorizadas e preparando consideraesbem fundamentadas. Enquanto eu estudava o caso envolvia-me progressivamente maisem suas perplexidades jurdicas, tendo chegado a aproximar-me de um estadosemelhante quele de meu colega Tatting neste caso. De repente, porm, apercebi-meclaramente de que todas estas intrincadas questes realmente nada tinham a ver com aquesto, e comecei a examin-la luz do senso comum. Da, o litgio ganhou uma novaperspectiva e dei-me conta de que a nica coisa a fazer era decidir pela absolvio dosacusados por falta de provas.

    Eu fui conduzido a esta concluso pelas seguintes consideraes:1) ordem perturbada: O conflito em que o autor fora ferido tinha sido muito

    confuso, com algumas pessoas tentando chegar ao centro do tumulto, enquanto outrasprocuravam afastar-se dele; algumas golpeando o sacerdote, enquanto que outrastentavam, aparentemente, proteg-lo.

    2) presuno: Teriam sido necessrias algumas semanas para apurar a verdade.Decidi ento que nenhuma mandbula fraturada era to importante para a comunidade(os ferimentos do sacerdote, seja dito de passagem, tinham se curado nesse meio tempo,sem que o desfigurassem e sem qualquer diminuio de suas habilidades normais).

    3) vitimologia[14]: Alm disso, convenci-me profundamente de que o autor tinha,em larga medida, dado causa ao conflito. Ele sabia quo inflamadas estavam as paixese podia facilmente ter encontrado outro lugar para exprimir seus pontos de vista. Minhadeciso foi amplamente aprovada pela imprensa e pela opinio pblica, j que ningumpoderia tolerar as concepes e prticas que o sacerdote expulso tentava defender.

    Agora, trinta anos mais tarde, graas a um promotor de justia ambicioso e a umporta-voz legalista dos jurados, defronto-me com um caso que suscita problemas que, nofundo, so muito semelhantes queles contidos no litgio que terminei de expor. O mundono parece mudar muito, mas desta vez no se trata de um julgamento por quinhentos ouseiscentos irmos de f, mas da vida ou morte de quatro homens que j sofreram maistormentos e humilhaes do que a maioria de ns suportaria em mil anos.

    Eu concluo que os rus so inocentes da prtica do crime que constitui que soacusados e que a sentena deve ser reformada

    7. Manifestao do Juiz Tatting

    O presidente do Tribunal questionou-me se, aps acompanhar dois votos que

  • acabam de ser exarados, se eu desejaria reexaminar a posio previamente assumida.Quero expressar que, depois de ouvi-los, sinto-me ainda mais fortalecido em minhaconvico de que no devo participar do julgamento.

    8. Concluso

    O Superior Tribunal divide-se e, com isso, constata-se o empate de votos nadeciso, da ser confirmada a deciso condenatria do Tribunal de primeira instncia. Foideterminado o horrio e o local da execuo de sentena, quais sejam as seis primeirashoras da sexta-feira, dia 2 de abril do ano 4300. O executor pblico est instrudo aproceder com toda a diligncia conveniente para pendurar cada um dos acusados pelopescoo e aguardar at o momento em que eles morram na forca.

    9. Post Scriptum

    Agora que o Tribunal prolatou sua deciso, o leitor intrigado pela escolha da datapode desejar ser relembrado que os sculos que nos separam do ano 4300 soaproximadamente os mesmos que se passaram desde a poca de Pricles[15].

    No h provavelmente necessidade alguma de observar que o Caso dosExploradores de Cavernas no pretende ser nem uma obra de stira, nem uma profeciaem qualquer sentido comum do termo.

    No que diz respeito aos juzes que compem o Tribunal do Presidente Truepenny,eles so naturalmente to fictcios quanto os fatos e precedentes jurisprudenciais quetratam. O leitor, que se recusar a aceitar este ponto de vista e que procurar descobrirsemelhanas contemporneas onde nada disso foi pretendido ou considerado, deve seradvertido de que se mete numa aventura sob sua prpria responsabilidade, a qual podelev-lo a desviar-se das verdades enunciadas nos votos emitidos pela Corte Suprema deNewgarth. As diferentes argumentaes foram imaginadas com o nico propsito defocalizar certas posturas filosficas divergentes a respeito do direito e do estado. Taisposturas so ainda hoje idnticas as que se cogitavam nos dias de Plato e de Aristteles.Talvez continuaro elas a apresentar-se mesmo depois que a nossa era tenhapronunciado a propsito a sua ltima palavra.

    Se houver alguma espcie de predio no caso, no vai alm da sugesto de queas questes nele versadas encontram-se entre os problemas permanentes da raahumana.[2] Tambm denominada espeleologia ou espeologia, a espeluncologia trata do estudo daformao e constituio de grutas e cavernas naturais, bem como do estudo dosorganismos que vivem dentro das cavernas.[3] Correspondente aqui ao direito natural (jusnaturalismo), uma das escolas do direitoque credita a origem do sistema jurdico, bem como das regras jurdicas, origemnatural de todas as coisas, produzidos pela natureza divina, humana ou racional.[4] Cessando a motivao da legislao, cessa a prpria norma em questo.

  • [5] Estamos diante da figura da inexigibilidade de conduta diversa, compreendida comoimpossibilidade de proceder em conformidade com a legislao por foras que lhes soestranhas. D-se aqui o reconhecimento do princpio da no-exigibilidade decomportamento lcito, como um causa excludente de culpabilidade no previstaexpressamente na legislao.[6] Na verdade, a doutrina autorizada apregoa que o instituto da legtima defesa noconta com registros histricos confiveis na Antiguidade entre os primeiros povos, comoos egpcios e os mesopotmicos. Mas, h documentao farta de sua ocorrncia nodireito grego e no direito romano.[7] No direito penal brasileiro, a legtima defesa apresenta-se como um direito exercidodiante da agresso injusta e iminente. Claramente, funciona como mecanismo paraafastar a leso de direito iniciada com a conduta ilcita do agressor.[8] A maioridade no Brasil, depois do Cdigo Civil de 2002, passou de 21 anos para 18anos. Assim, atinge-se a maioridade no Brasil aos 18 anos de idade.[9] Atualmente, o furto famlico altamente difundido pela doutrina nacional, bemcomo pela jurisprudncia. Na verdade, trata-se de furto praticado pela pessoa em estadode necessidade. Diante do nfimo valor dos bens e da necessidade do autor da condutadelituosa, desenvolveu-se o princpio da insignificncia para o crime chamado de delitode bagatela. Na verdade, tal combinao ressalta o baixo potencial lesivo de tais crimes eo estado de necessidade como excludente de ilicitude.[10] H muito tempo no pode o juiz afastar-se da funo de julgar por sentimentontimo ou qualquer outra alegao de ordem pessoal, exceto quando parentes seusestiverem envolvidos com a causa, seja como parte ou patrono. Pelo art. 4 do Cdigo deNapoleo, emergiu a proibio de o juiz recusar-se a julgar. Deveras, sob pretexto delacuna, contradies ou obscuridade da legislao, o juiz no pode recusar-se a decidir,Assim, o fato de juiz prolatar deciso passa a ser um dever inescusvel. N a esferalegislativa brasileira, o art. 4 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil reza que quando a leifor omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princpiosgerais de direito. De forma mais direta, o art. 126 do Cdigo de Processo Civil dispe queo juiz no se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. Nojulgamento da lide caber-lhe- aplicar as normas legais; no as havendo, recorrer analogia, aos costumes e aos princpios gerais de direito. No h aqui pelo menos trspossibilidades de o juiz no pode se negar a decidir, quais sejam os casos de omissolegal ou sua obscuridade. Vencida a busca por dispositivos legais, e em sendo infrutfera, preciso decidir em conformidade com todas as fontes do direito, quais sejam oscostumes e os princpios, a doutrina e a jurisprudncia. Alm disso, as formas deintegrao do direito tambm devem ser empregadas para suprir as lacunas, como se dcom a utilizao da analogia, da equidade e do direito comparado.[11] O que estava fazendo.[12] A Lei n 11.689, de 9 de junho de 2008, alterou dispositivos do Cdigo de ProcessoPenal relativos ao Tribunal do Jri. Ao tratar da produo de provas referentes ao

  • interrogatrio, alterando o art. 473 do CPP, verificou-se a incluso da cross-examinationno direito processual penal brasileiro. E m sntese, tal dispositivo legal mencionadopermite que a instruo plenria tenha atuao do juiz, do representante do MinistrioPblico e seu assistente, bem como do defensor. Autoriza todos os envolvidos citados atomar as declaraes do ofendido e das testemunhas. Dispensa-se a refernciaobrigatria e antecipada ao juiz, para posterior repergunta; assim, o questionamento direito ao interrogado ou testemunha. Ainda assim, por exigir a reperguntas dosjurados, no se d a adoo cross-examination com a fidelidade em que ocorre emalgumas unidades federadas (estados) dos Estados Unidos.[13] Trata-se de um dos personagens da antiga pea teatral The Mikado Discussion,esteretipo de polticos e autoridades, perdidos em sua prepotncia e arrogncia.[14] A vitimologia pode ser compreendida como uma teoria por meio da qual um crimepode ser motivado pelo comportamento anormal da prpria vtima. a vtima que dcausa a ocorrncia do crime.[15] P